A MENINA DO CAVALO
O galo cantou já passava das cinco horas da manhã. O dia estava escuro
ainda e já se percebia uma movimentação no sítio Limeira, situado em um vale da
serra da Mantiqueira, no interior de São Paulo.
Os dois empregados do
sítio já estavam na lida cuidando dos afazeres diários, mesmo sendo Sábado,
limpando os estábulos, preparando a alimentação dos animais. Os tratores não
seriam usados, pois era dia de receber turistas, já que o sítio fazia parte da
rota do turismo rural.
O dia já começava a clarear, trazendo no céu nuances de amarelo-dourado
quando o velho avô, acordado desde às quatro, foi chamar sua neta de dezesseis
anos. Sarah era uma jovem que vivia com seus avós desde que era um bebê. Tinha
uma vasta cabeleira castanha e ondulada e sua pele mais morena que o normal era
bronzeada do sol constante daquela região. Nunca pensou em morar na cidade,
pois via ali um verdadeiro paraíso na terra e sentia-se muito feliz em poder
viver junto à natureza. Claro, estava na idade de pensar em fazer faculdade,
mas ainda não se decidira se seguiria o caminho do avô, como engenheira
agrônoma ou se preferiria cursar turismo e investir nesse lado. Como todo jovem
da sua idade, pensava que tinha tempo para decidir e nunca parara para pensar
realmente o que faria.
− Sarah, preciso que você vá buscar erva-do-monge na casa do meu
compadre. Sua avó passou muito mal essa noite. Dona Santa tinha esporão e tinha
passado a noite com muita dor. Aposentados e acostumados com a vida no campo,
era comum os remédios à base de ervas para resolver seus problemas de saúde.
Com cara de sono, Sarah
levantou-se, espreguiçou-se lentamente esticando seus braços e ficando nas
pontas dos pés, enquanto pensava na possibilidade de passar aquele dia de
sábado cavalgando. Cavalos eram sua grande paixão!
Depois de tomar seu
café da manhã foi ao estábulo selar seu cavalo Foguinho. Um cavalo marrom de
crista ruiva o que deu motivo ao apelido. Sarah ganhou Foguinho ainda potrinho,
como presente de aniversário de quinze anos de seu avô. Foi paixão à primeira
vista. Menina e cavalo se entendiam com um olhar e ele sempre a seguia para o
lanche das manhãs: cenoura e sal.
Dali a meia hora já estava com tudo pronto e algumas provisões em um
embornal que levava à tiracolo para comer no caminho. A viagem levaria a manhã
inteira e ela não queria demorar-se para que pudesse estar de volta antes do
anoitecer à casa dos avós.
– Minha filha, cuidado no caminho viu? – falou atenciosa a avozinha de
sua cama. – Não esforça muito o Foguinho pra ele não te deixar na mão.
– Fica fria, vó, que ele não é mula pra empacar! E depois nós nos
entendemos muito bem, a senhora sabe disso, né? – e deu um beijo na bochecha
dela, saiu, deu outro beijinho no avô e partiu.
Durante o caminho, galopava
sentindo o vento acariciar-lhe o rosto e o ar ainda úmido da manhã trazia um
frescor que a deixava animada enquanto apreciava a paisagem à sua volta. As
montanhas ao longe pareciam tapetes verdes ondulados, de várias texturas e tons
diversos. Olhando para a direita da estrada de terra, era possível avistar a
cidade ao longe, quieta e pacata cidade do interior. Vez ou outra, um carro
cruzava o seu caminho. Outros cavaleiros também passavam, vez o outra, a um
lento cavalgar.
Quando o sol começou a esquentar o dia, diminuiu no galope, pois já
estava há mais de duas horas cavalgando. Em seu passo lento, percebeu que
estava próxima de um riacho, cujo barulho das águas correndo atraiu a atenção
de Foguinho. Saiu da estrada e, adentrando um pouco na mata, chegou na beira de
um riacho para que seu cavalo bebesse um pouco de água.
Também bebeu um pouco daquela água límpida e clara, passando suas mãos
molhadas pelo rosto, mãos e pescoço. Seguiu alguns metros ladeando rio acima
até avistar uma bela cachoeira à sua frente. Não era grande, deveria ter uns
oito metros de altura, entretanto sua queda era suave e constante, trazendo
gotículas de água ao seu já molhado rosto, aliviando a onda de calor gerada
pela longa caminhada.
Sentada em uma pedra convidativa de frente para a queda d’água, pensava
que sua vida, mesmo sem ter conhecido seus pais, era muito boa. Seus avós,
embora já bem velhinhos, sempre a apoiaram, lhe deram carinho e conforto, mas
nunca comentavam muito sobre seus pais. Diziam apenas que eles tinham sofrido
um grave acidente de carro. Pegou uma foto deles, já um tanto amarrotada, que
sempre trazia em sua bolsa e deu um longo suspiro, pensando em qual nuvem do céu
eles estariam olhando ela.
Deu um pulo de repente pensando que já havia perdido muito tempo ali e
não poderia se demorar. Montou em seu cavalo e mais vinte minutos já estava atravessando
a porteira do compadre do seu avô. Ricardo, o filho de vinte e oito anos, foi
recepcioná-la, pegando seu cavalo e levando ele para descansar. Entre abraços e
cumprimentos, foi recebida com todo o carinho pela família. Explicou o motivo
da visita e desculpou-se por não poder ficar muito tempo.
A esposa do compadre fez questão de servir-lhe uma galinhada, prato
típico mineiro que consiste em arroz cozido e frango cozido em pedaços,
temperado com açafrão, vinagrete, e tutu de feijão. Depois de ter almoçado e
dado um dedo de prosa com o pessoal, recebeu uma sacola cheia de folhas e uma
raiz para ser plantada também. Sarah agradeceu por tudo e, como já era quase
uma da tarde, decidiu voltar.
O amigo do avô insistiu em levá-la de volta, mas ela relutou dizendo
que não deixaria o cavalo para trás. Sentia bastante disposta após o farto almoço
e chegaria cedo, ainda, antes do anoitecer. Depois de se despedirem, ela parte
com um pedaço de bolo dado pela mulher do compadre.
De volta na estrada o cavalo já um tanto cansado anda mais
vagarosamente. O sol ainda queima na pele e o dia seco deixa o céu azul anil
sem riscas de nuvens. Ela olha para cima e decide pegar um atalho. Decide ir
pelas montanhas como já havia feito diversas vezes na companhia de seu avô. Iniciou
a travessia da montanha, cujo final acabaria na beira da estrada bem próximo ao
sítio do avô.
Passava pela vegetação rasteira, entre uma árvore e outra,
cruzava com algumas vacas da propriedade pela qual passava. Umas pastando,
outras no remanso de alguma mangueira. Não demorou muito e já descia em direção
à estrada, passando por umas pedras e galhos soltos no chão.
A poucos metros de chegar na estrada, repentinamente Foguinho
avistou uma cobra que rastejava bem à sua frente. O cavalo, desesperado,
relinchou e ficou sobre as duas patas traseiras, em seguida deu um pinote,
assustado, arredio e saiu em disparada estrada afora.
Sarah ficou no chão, desacordada.
Por um tempo ela permaneceu ali e quando abriu os olhos, o
crepúsculo já se fazia presente. Olhou algumas estrelas que já despontavam no
céu e tentou levantar-se, mas soltou um gemido. Suas costas doíam demais e não
conseguia nem sentar. Embora estivesse sozinha no meio do nada, a noite
chegando, a menina não sentia medo, apenas preocupação pelos seus avós.
– Nossa neta está demorando, não acha? – D. Santa estava
preocupada.
– Sim, resmungou o avô coçando a careca e olhando para fora como
quem quisesse enxergar a menina em seu retorno.
– Parece que um cavalo vem vindo na estrada, acho que é ela! – o
avô saiu correndo em direção à porteira. – Foguinho! – o cavalo havia chegado sozinho.
Sarah fecha os olhos com força e esforça-se para ficar em pé. A
dor espalhou-se pela nuca como se um líquido quente tivesse sido derramado em
suas costas. “Devo ter batido a cabeça”. Desistiu de tentar se levantar, fechou
os olhos e ficou desesperada. “Meu deus, o vovô vai ficar furioso quando
descobrir que eu peguei um atalho! Foi tudo culpa minha, eu não devia ter feito
isso, mas que droga!” E uma lágrima escorreu em seu rosto.
A noite cobriu o céu com seu manto escuro e Sarah começou a
ficar apreensiva. Ninguém passava por aquela estrada e o frio envolveu seu
dolorido corpo. Resolveu descansar mais um pouco antes de tentar se levantar e
pensar em uma boa desculpa para dar aos seus aflitos avós.
Passados alguns minutos, aparece uma lanterna de caminhonete
atrás de si. O filho do compadre, moço de seus vinte e oito anos, foi seguindo
a garota, a pedido do avô, que ligou aflito pedindo informações, e chegou a
tempo de socorrê-la.
– Sarah! – gritou o rapaz abrindo a porta do carro.
– Ricardo? É você? Como me achou aqui? Ai, minha cabeça...
– Seu avô ligou para meu pai e me pediu que fosse atrás de você,
pra sua sorte, mocinha! Vem, deixa eu te ajudar a se levantar.
– Não consigo! – choramingou ela.
– Vem, deixa eu te ajudar, disse Ricardo puxando gentilmente
Sarah pelos braços. – Dói quando respira fundo?
– Não... disse já sentada
– E quando ri?
Ela riu e disse ai e ambos riram divertidos. Depois de
certificar-se de que ela não havia quebrado nada, Ricardo a pegou no colo com
delicadeza e a colocou no carro.
– Muito bem, comece a falar! E a menina contou tudo o que havia
acontecido desde que saíra de sua casa. A ideia do atalho para chegar mais cedo
em casa, a cobra no caminho, a queda do cavalo.
Ele a leva de volta para casa, mas antes, Sarah o faz prometer
que não contaria o incidente aos seus avós para não os deixarem mais
preocupados do que já deveriam estar. Ricardo concordou desde que prometesse
que fosse no hospital no dia seguinte para fazer exames. E assim ficaram
combinados. Chegaram na fazendo em pouco
tempo.
Seu avô veio abraçá-la enquanto a avozinha permaneceu sentada
aguardando eles entrarem e ele foi logo perguntando o porquê da demora. E por
que é que Foguinho veio sozinho. Como ela começasse a gaguejar para responder,
foi Ricardo quem disse:
– Encontrei-a na estrada descansando um pouco, na verdade,
tirando um cochilo e resolvi lhe dar uma carona – piscou o olho para Sarah,
numa clara intenção de ajudá-la.
– Começamos a conversar e perdemos um pouco a noção da hora, foi
só isso. Ah, e como percebemos que começava a escurecer, deixamos que Foguinho
viesse na frente e a trouxe em segurança até vocês.
– Minha netinha, se acontecesse algo com você eu não saberia
mais viver...
–
Está tudo bem, vô, eu estou aqui! – e deu um longo abraço nele.
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